segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Café cheio, pingado, em chávena escaldada, com cheirinho, adoçante, num copo de papel para levar



Ele está no meio de nós.
A primeira abertura foi discreta. Metido a um canto de um centro comercial da periferia, não entusiasmou nem afastou.

Mas eis quando (oh ignomínia, oh barbárie) a Starbucks decide abrir a sua segunda loja em Belém. Sim, junto aos Pastéis de Belém, essa bandeira nacional hipercalórica, esse hino à pastelaria semi-industrial, essa armadilha para turistas, esse símbolo de um país erguido a doce de ovos e massa folhada.

Querem guerra. Querem invadirmos. Oh, senhores que nos estão a descaracterizar. 'Filho, fica em casa, não te deixes submeter a essa aculturação imperialista. Fica em casa a morder bolachas Maria e só sais para beber a bica. Sim, a nossa bica. Nossa.'


As reacções, agora, são extremadas. Óptimo. Os acérrimos defensores do portuguese way of life (ao escrever isto fiquei com uma franja igual à do Carlos Coelho, vejam lá) cerram fileiras. De veias inchadas, gemem baixinho: «Então e os nossos cafés? Então e a nossa cultura do café».

Depois vem o argumento: «O nosso café é dos melhores do mundo». Facto. É bom. A bica é uma coisa fantástica. A escaldar na loiça manchada -- que importa! --, pronta a ser sorvida em menos de quatro goles. Pequena, a borbulhar numa chávena que se pega só com o polegar e o indicador -- e o mindinho espetado, qual Torre Eiffel.

Uma delícia. Desperta, põe os intestinos a funcionar e é pretexto para conversas sérias a meio da tarde ou pausas numa manhã improdutiva de trabalho: «Já viste a miúda nova do economato?».

A bica é uma coisa maravilhosa e infinitamente melhor que a mixórdia castanha que serve o Starbucks. Estamos de acordo. Mas os cafés -- espaço físico -- da cadeia norte-americana são superiores? Decididamente.



Aos senhores das veias inchadas, vou rapidamente descrever a nossa 'cultura do café': televisão ligada e em descarga decibélica permanente (sport tv como referência); azulejos no chão, na parede, às vezes na mesa -- o resultado final assemelha-se ao prolongamento da nossa casa-de-banho; moínho do café a rugir de cada vez que alguém tenta começar uma conversa, loiça a ser empilhada à bruta de cada vez que se tenta retomar essa mesma conversa; empregados de idade, licenciados na 'universidade da vida' com um mestrado em antipatia; decoração deixada nas mãos dos fornecedores que, em troca de toalhas de praia Sumol e porta-chaves daqueles de trazer ao pescoço, colam autocolantes em todas as superfícies; luzes brancas* como as que há no talho ou no espelho do wc, boas para fatiar gado ou espremer pontos negros. Ia-me esquecendo do inevitável Cri-Cri, a tostar os insectos sob aquela luz azul -- aquele ambiente 'matiné dançante' que só um exterminador de insectos eléctrico pode dar.

*no seu livro Why War?, Norman Mailer faz uma análise impiedosa, mas ajuizada, da influência negativa desta iluminação na nossa sociedade. Segundo Mailer, as luzes brancas nas escolas estão por detrás das elevadas taxas de abstinência e insucesso escolar. Como se trata de uma luz forte, de altos contrastes, evidencia todos as imperfeições da pele -- acne, borbulhas, olheiras, etc. -- fazendo com que os alunos se sintam inferiorizados. Com a auto-estima de rastos, a motivação para continuar os estudos desaparece.

Palmas para Mailer.

Nos cafés portugueses o centro da acção é o balcão. É lá que se pede, come, bebe, paga e sai. Em pé, sempre, que o Café Central não é lugar para a mandrianice. As cadeiras servem para os dias de jogo. Não há aquecimento, não há serviço, não há conforto. Há o Correio da Manhã.

Quem estiver em Belém e quiser parar para descansar, beber um café e comer alguma coisa já não tem de passar pelo martírio acima descrito.


Os cafés Starbucks são confortáveis. Há música ambiente a um volume tolerável, acesso à internet sem fios, jogos de tabuleiro, jornais, revistas e luzes amarelas para o descanso das nossas fatigadas retinas. No Starbucks há um balcão que é de passagem e umas mesas e cadeiras que são para lá ficar. Apetece lá ficar.

O inverso pode-se encontrar na mesma rua, a poucos metros de distância, onde as luzes brancas piscam de fulgor patriótico.

O Starbucks vem destruir a 'cultura portuguesa do café'? Que não mate, mas que moa. A ver se de uma vez por todas acabe aquele desconforto do «vai-se sentar só para beber uma bica?».

1 comentário:

SB disse...

aplausos!!
na mouche ;)